O contrabando de madeira está a financiar a insurgência? Uma olhar nas evidências

Estarão as exportações ilícitas de madeira a financiar a insurgência em Cabo Delgado? De acordo com a Avaliação Nacional dos Riscos de Financiamento do Terrorismo, do governo moçambicano “o facto de o tráfico de madeira e outros produtos florestais ocorrer em zonas sob ameaça terrorista sugere que esta actividade tem sido uma fonte de rendimento para os terroristas.”
2 Julho, 2024

O relatório, datado de Dezembro de 2023, mas só tornado público este ano, acrescenta que “estima-se que o tráfico de madeira em Cabo Delgado rende cerca de 125 milhões de meticais por mês para os contrabandistas.” Este valor, cerca de 2 milhões de dólares, veio, no entanto, com uma ressalva importante de que “não há registo de ligações diretas [do contrabando] ao terrorismo.”

Embora o comércio ilícito de madeira seja um grande problema em Cabo Delgado e de um modo mais geral, em Moçambique, as evidências de que financia a insurgência são extremamente escassas. No entanto, as alegações contrárias persistem. Em Maio, a Agência de Investigação Ambiental (EIA) também afirmou num relatório que a insurgência é financiada por cerca de 2 milhões de dólares norte-americanos por mês provenientes deste comércio ilícito de recursos naturais. O número está em circulação há alguns anos, com poucas evidências que o sustentam.

O valor de 2 milhões de dólares norte-americanos por mês parece remontar a um relatório de 2019 publicado pelo Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE). Este baseou-se em pesquisas realizadas entre Novembro de 2017 e Fevereiro de 2018 – entre um e três meses após o início da insurgência em Outubro de 2017.

O relatório do IESE afirmou que o financiamento inicial do grupo insurgente provinha de “uma economia local ilícita com ligações a redes clandestinas de tráfico de madeira, carvão, rubis e marfim, entre outros produtos”.

Como estimativa de quanto poderia vir desta forma, o estudo cita fontes não identificadas que estimaram que 50 mil “tábuas”, provavelmente significando toros, deixavam Cabo Delgado todos os meses e seriam vendidas na Tanzânia por 2.500 meticais cada. Esta foi a base para o valor de receita total de 125 milhões de meticais por mês. O relatório prosseguiu dizendo que apenas “uma parte insignificante” das receitas do comércio ilícito ficava nas mãos dos líderes locais da insurgência em Cabo Delgado.

Investigações subsequentes não conseguiram vincular o comércio de madeira à insurgência. Henry Tugendhat e Sérgio Chichava (este último também do IESE) em 2021 referem-se aos números do IESE, mas citam um especialista local no comércio de madeira de Moçambique dizendo: “Não conseguimos ligar os comerciantes chineses ao ao al-Shabaab”, embora o especialista tenha dito , “Sabemos que a madeira colhida em áreas controladas pelos militantes foi enviada para a China e o Vietname”.

Em 2022, a Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional afirmou que a exploração madeireira está a ocorrer em áreas sob controle dos insurgentes, mas enfatizou: “Não há relatos que sugiram que o al-Shabaab tenha estado envolvido diretamente no comércio madeireiro ou ‘tributado’ sistematicamente o comércio como forma de financiamento.”

A estimativa de 2 milhões de dólares por mês também já tem seis anos, período durante o qual a insurgência evoluiu significativamente. No entanto, ainda é apresentado como fiável no relatório do governo de Moçambique e foi utilizado mais recentemente num relatório da EIA em Maio de 2024.

As alegações da EIA vão além da madeira ilícita. “Sabe-se que os insurgentes se envolveram ou tributaram o comércio ilícito de drogas, rubis, marfim e madeira para financiar as suas atividades.” Mas as fontes citadas para esta afirmação são o relatório da Iniciativa Global mencionado acima, que disse o contrário; e a Avaliação Nacional do governo de Moçambique, que também não encontrou qualquer ligação directa.

Seis anos e meio depois do início da violência, as evidências de que o comércio ilícito de madeira financia a insurgência são mais fracas do que nunca. Mas não há dúvida de que o comércio existe e contribui para a pobreza e a desigualdade que assolam Cabo Delgado. Uma melhor compreensão dessas questões e de medidas para as combater serão tão importantes, senão mais importantes, para pôr fim ao conflito em Cabo Delgado como as tentativas até agora infrutíferas de seguir o dinheiro.

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