Os riscos e desafios da legalização das forças locais
A 15 de Dezembro de 2022, o parlamento moçambicano aprovou um aditamento à legislação de 2019 que rege as FDS para conceder estatuto legal às milícias comunitárias, mais conhecidas como Forças Locais. Com esta alteração, as Forças Locais deixam de ser consideradas como actores não estatais, passando a operar num quadro legal específico, e com uma estrutura de comando definida, ainda que por um período temporário, segundo o Ministro da Defesa. Embora essas forças tenham sido atores importantes na proteção das comunidades contra ataques de insurgentes em Cabo Delgado, a sua legalização traz uma série de riscos e desafios para o governo.
A legalização das Forças Locais sempre foi um objetivo do governo, e do partido Frelimo em particular. Em Abril do ano passado, discursando na VI Conferência Nacional da Associação dos Combatentes de Libertação de Moçambique (ACLIN), um importante órgão da Frelimo, o Presidente Filipe Nyusi elogiou o papel das milícias comunitárias, que, segundo ele, “contribuíram para acabar com as injustiças e crimes hediondos perpetrados pelos terroristas”. Estas palavras foram ecoadas pelo Comandante-Geral da Polícia Bernardino Rafael, que apelou à população para não fugir dos insurgentes, mas que ficassem e protegessem as suas aldeias com os recursos ao seu dispor. O Ministro da Defesa Nacional Cristóvão Chume impulsionou o processo. Ao assumir o cargo, Chume recebeu a missão de modernizar as FDS. Falando em Abril de 2022, ele disse que o ministério estava a trabalhar num estatuto para garantir que as Forças Locais “continuassem a trabalhar em alinhamento” com o governo e “continuassem a respeitar os direitos humanos”.
Para permitir a legalização das Forças Locais, o Governo moçambicano apresentou um aditamento ao artigo 7 da Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas de Moçambique – Lei 18/2019, de 24 de Setembro – a fim de incorporar as Forças Locais na estrutura das FADM. A lei sempre reconheceu o papel dos cidadãos na defesa nacional. Antes da alteração, o n.º 1 do referido artigo dizia: “A defesa da pátria é dever fundamental de todos os moçambicanos.” A lei não permitia o funcionamento de milícias locais, e os civis eram incorporados às forças de defesa por meio do serviço militar, também regulamentado por lei. O serviço militar estabelece o registo militar dos cidadãos como forma de ingresso nas FADM. Por outro lado, a lei também prevê a mobilização de civis (em geral ou parcial) para a defesa da pátria. No entanto, esta mobilização é feita em contexto de guerra, de acordo com o artigo 161 da constituição, e tal declaração ainda não foi feita em Cabo Delgado.
A incorporação das Forças Locais nas FADM, em detrimento da polícia, justifica-se com base no artigo 8 da Política de Defesa e Segurança, que refere que “No âmbito da execução da Política de Defesa e Segurança, o Ministério da Defesa Nacional é responsável pelo enquadramento dos cidadãos com vista ao cumprimento do seu dever para a defesa nacional, nos termos da lei.”
Neste contexto, o parlamento moçambicano aprovou o aditamento dos seguintes parágrafos ao artigo 7.º da Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas de Moçambique:
- A passagem à resistência activa e passiva dos cidadãos nas áreas do território nacional ocupadas por forças agressoras pode ser materializada através da Força Local, constituída por membros da comunidade de uma circunscrição territorial de base.
- As Forças Locais funcionam sob a direcção do Estado-Maior General das Forças Armadas de Defesa de Moçambique;
- O estabelecimento, a organização e funcionamento da Força Local compete ao Conselho de Ministros.
Na perspectiva de Chume, a legalização das Forças Locais visa “reforçar o papel das FDS no combate e contenção da propagação de incursões terroristas, proteção de assentamentos comunitários e infra estruturas públicas e privadas”. Em outras palavras, espera-se que as Forças Locais preencham a lacuna deixada pelas FDS, dada as suas limitações do conhecimento local. As estimativas indicam que as FADM, por exemplo, têm pouco menos de 12.000 efetivos em todo o país, o que é insignificante para garantir proteção suficiente a todo o país, sem falar nos 17 distritos de Cabo Delgado.
Um regulamento ainda a ser aprovado pelo governo irá trazer mais luz sobre o estabelecimento, organização, funcionamento e cronograma das Forças Locais. Atualmente, as Forças Locais surgem espontaneamente, ou a mando do governo ou mesmo de partidos políticos. Um exemplo recente é o caso da milícia Naparama, que foi incentivada pelo secretário da Frelimo em Cabo Delgado a assumir um papel activo no conflito, através da instalação de postos de controlo nas principais vias de acesso e da realização de operações de patrulhamento. O regulamento a aprovar em Conselho de Ministros deverá também clarificar os limites de actuação das Forças Locais, tanto do ponto de vista operacional como temporal.
A aprovação desta lei não foi por consenso no parlamento moçambicano. Os partidos de oposição RENAMO e o Movimento Democrático de Moçambique (MDM) votaram contra o projeto de lei, em primeiro lugar devido à falta de clareza sobre o perfil dos cidadãos que irão compor as Forças Locais e beneficiar das armas e, em segundo lugar, com o risco de proliferação de armas. O MDM sugeriu que a protecção dos assentamentos comunitários e das infra-estruturas públicas deveria ser garantida apenas pelas forças do Estado, e não pelas forças comunitárias. A FRELIMO propôs a legalização das Forças Locais como força temporária e transitória a ser utilizada no contexto do conflito de Cabo Delgado.
A criação de Forças Locais trará desafios. Do lado político, a existência de milícias pode representar uma ameaça na era pós-conflito, dada a complexidade do processo de desarmamento e desmobilização de ex-combatentes. Para evitar isso, essas forças terão que romper com seus alinhamentos partidários, caso se pretenda desenvolver um setor de defesa totalmente apartidário. A maioria dos membros das Forças Locais está filiada na ACLIN, uma organização do partido Frelimo que reúne veteranos da guerra de libertação de Moçambique. A sua estreita ligação ao partido pode, em circunstâncias futuras, transformá-los num braço armado da Frelimo, à medida que o país procura livrar-se dos partidos políticos armados.
Do ponto de vista militar, as Forças Locais operam sob comando próprio, por vezes autónomo das FDS. Embora a retórica política afirme que essas duas forças trabalham em coordenação, sua relação no terreno tem sido mista. Por vezes é marcada pela coordenação, e outras vezes por disputas. Enquanto as FDS acusam as Forças Locais de serem inexperientes no combate e de dificultarem os esforços de contrainsurgência, estas últimas criticam as FADM e a polícia por não serem eficazes no combate à insurgência. Um desafio do Ministério da Defesa Nacional, e das FADM em particular, é como construir uma relação hierárquica entre forças que por vezes têm estado em contendas umas com as outras. Já existe um esforço do governo provincial para impor essa hierarquia. Na sua última deslocação a Montepuez a 9 de Janeiro de 2022, o Governador provincial de Cabo Delgado Valige Tauabo procurou deixar claro aos Naparama que as FDS estão na liderança dos esforços de contrainsurgência, e que eles devem estar totalmente subordinados ao seu comando, atuando de forma concertada e coordenada para alcançar o sucesso.
Outro desafio é a responsabilização pelos actos praticados pelas Forças Locais. Ainda não existem mecanismos que as FADM irão implementar para monitorar e responsabilizar as Forças Locais por práticas que violem os direitos humanos. Vários casos de abusos militares já vieram à tona na mídia, sem que as FADM anunciassem qualquer tipo de investigação ou responsabilização.
Do lado material, as Forças Locais não recebem nenhum treinamento militar. Do governo, recebem apenas munições, uniformes e alimentação. Não recebem salários, embora como veteranos de guerra, alguns recebam pensões através do Ministério dos Combatentes, o que serve como uma espécie de incentivo. Os Naparama, um grupo distinto de milícias locais, não recebem nenhum incentivo material. O Ministério da Defesa Nacional deve estabelecer critérios de pagamento e outros incentivos para as Forças Locais. Se decidir atribuir salários, muitos cidadãos podem ingressar nas Forças Locais como forma de obter renda como estratégia para escapar ao desemprego. Caso contrário, é possível que as armas alocadas, se não forem devidamente monitoradas, possam ser usadas para cometer crimes.
O governo moçambicano acredita que as Forças Locais vão colmatar o défice de efetivos das FDS e assim garantir a segurança das aldeias e vilas. No entanto, os desafios apresentados aqui podem representar uma ameaça potencial no futuro próximo. O regulamento que irá reger as Forças Locais pode abordar alguns deles, mas é certo que o país ainda enfrentará o problema das milícias armadas por alguns anos.
Este artigo é excerto do Cabo Ligado Semanal, uma colaboração do Zitamar News, MediaFax e ACLED.